Grupo de Especialistas em Transformação Digital Relatório da 2ª Reunião

Atualizado: 29 de maio 2022

1) Resumo

A 2º reunião do Grupo de Especialistas em Transformação Digital ocorreu pela plataforma de teleconferências Zoom e deu sequência ao primeiro encontro que, ao debater as tecnologias emergentes mais promissoras para o setor público, demandou a construção de propostas de como os gestores públicos devem se preparar para a adoção dessas tecnologias.

O encontro foi dividido em dois grandes blocos de discussão estimulados pela exposição do Dr. José Carlos Vaz, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas e coordenador do GETIP – Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovação na Gestão Pública. O professor abordou os desafios para a mobilização de capacidades para a incorporação de tecnologias emergentes pelo Estado brasileiro. Cada bloco contou com enquetes seguidas por uma rodada de discussão. O primeiro bloco foi centrado no levantamento dos principais problemas e situações onde foram ou poderiam ser apresentadas soluções tecnológicas com implementação de tecnologias emergentes, seguido pelo segundo bloco de discussões, que teve por objetivo o apontamento propositivo do que se pode fazer para reforçar as forças mobilizadoras que nós já temos na gestão pública. Por fim, o encerramento com apontamentos para o próximo encontro.

2) Abertura da reunião

O coordenador do grupo, Vagner Diniz, iniciou a reunião revelando a firme intenção, a partir desses encontros, de elaborar e disponibilizar documentos a toda comunidade interessada no tema. Provavelmente canalizar essas propostas em uma plataforma para ser apresentada ao próximo governo, uma vez que nos aproximamos das eleições presidenciais e parlamentares em novembro.

Destacou que na reunião anterior foi feito o levantamento de um leque de tecnologias emergentes, que poderiam ser de interesse do setor público, onde se destacou a Inteligência Artificial, como a mais fácil de ser adotada pelo setor, embora também houvesse outras que pudessem entrar no radar como blockchain e Internet das Coisas . Porém o mais importante da reunião, foi que após identificar essas tecnologias, foi levantada a necessidade de se criar capacidades estatais de tal forma que esse processo de adoção seja mais efetivo e sustentável. Portanto, foi pedido hoje ao professor Vaz para trabalhar esta ideia dos caminhos para se construir capacidades no setor público para adoção de inovação e tecnologias emergentes.

3) Palestra com o professor José Carlos Vaz – Desafios para a mobilização de capacidades para a incorporação de tecnologias emergentes pelo Estado brasileiro

Após fazer os agradecimentos pelo convite, o professor Vaz declara que acredita neste espaço de propostas, e que conforme o foi pedido, ele traz aqui provocações para ajudar a identificar os desafios para inovação e aplicação de novas tecnologias com relação às capacidades da gestão pública. Neste sentido, é trazido propositalmente no título desta apresentação a terminologia ‘’mobilização de capacidades’’, uma vez que há capacidades que existem, mas que se não forem mobilizadas elas não são capazes de fato, pois não é possível utilizá-las. Desta forma deve-se ter em vista que o setor público brasileiro não é pequeno, o Brasil não é um país desprovido de recursos, há uma certa burocracia nas áreas de tecnologia da informação e ciência e tecnologia, há também construção institucionais robustas nesta área. Portanto, deve-se pensar como se utilizar o que temos em um contexto que é cotidianamente desafiado por novas tecnologias emergentes com potencial disruptivo.

3.1) Olhando para dentro

3.1.1) A capacitação do corpo de profissionais técnicos implementadores e também do corpo dirigente.

Quando se trata da capacitação do corpo dirigente, há um primeiro problema a ser identificado, que acontece quando o agente observa a tecnologia apenas como um mero instrumento, que faz parte de um sistema de contratações e delegações e não como um tema estratégico ao desenvolvimento nacional e ao funcionamento do Estado. Identifiquei desta forma, cinco pontos focais para análise no sentido da capacitação dos agentes, que são:
a) Avaliação de possibilidade e limites das tecnologias;
b) Aquisição e escolhas tecnológicas;
c) Especificação ou desenvolvimento de soluções;
d) Articulação de parcerias tecnológicas;
e) Gerenciamento de projetos.

Pode-se dizer que as capacidades de ‘’Avaliação de possibilidades e limites das tecnologias’’ e ‘’Aquisição de e escolhas tecnológicas’’ são vinculadas, uma vez que muitas vezes as decisões que são tomadas no âmbito do Estado estão vinculadas a uma certa dependência de fornecedores críticos ou uma baixa capacidade de leitura das possibilidades tecnológicas, das reais alternativas, o que leva a uma simples reprodução das soluções de mercado, de uma maneira muitas vezes automática e de certa forma acrítica. Sobre a capacidade de ‘’Especificação ou desenvolvimento de soluções’’, pode-se dizer que mais do que capacitação para o desenvolvimento propriamente dito de soluções, deve-se também ter capacidade para especificar o que se quer, para encomendar, adquirir, tomar decisões e direcionar os fornecedores.

Eventualmente pode-se decidir que determinados lugares são importantes que se tenha desenvolvimento centrado no aparato estatal ou diretamente gerenciado por ele. Uma outra capacidade que é importante se pensar para as equipes de tecnologia, gestores e dirigentes públicos é a de ‘’Articulação de parcerias tecnológicas’’, o modelo de simples desenvolvimento endógeno ou simples terceirização talvez não dê conta de apresentar as respostas necessárias, sobretudo se pensarmos que estamos falando de tecnologias emergentes, e em que por diversas vezes os seus modelos de negócio não estão completamente definidos. Portanto, a gestão pública precisa estar preparada para envolver essas parcerias, estimular iniciativas de desenvolvimento, inclusive colaborativas, de coprodução. Uma outra capacidade que pode se destacar nesse campo, é a de ‘’Gerenciamento de projetos’’ em tecnologias emergentes, será que as técnicas utilizadas até o momento são suficientes para dar conta das necessidades advindas das necessidades de implementação e gerenciamento de novas tecnologias?

3.1.2) Governança da tecnologia

Significa que não basta apenas capacitar as pessoas para tomar decisões, mas é preciso ter mecanismos e instâncias decisórias para dinamizar as respostas necessárias para adoção de novas tecnologias, desta forma também foram identificados pontos focais para estimular o debate, que são:
a) Mecanismos e instâncias decisórias sobre adoção de novas tecnologias na gestão pública;
b) Transparência e controle social sobre as decisões tecnológicas;
c) Processos de monitoramento e avaliação de riscos e resultados;
d) Mecanismos de prevenção/redução da dependência tecnológica;

Não podemos tratar uma tecnologia emergente, que não está muitas vezes consolidada em termos de modelo de negócio, cadeia produtiva e cadeia de fornecimento, da mesma maneira como eu trato uma tecnologia tradicional. Portanto, talvez seja necessário ter ‘’Mecanismos e instâncias decisórias sobre adoção de novas tecnologias na gestão pública’’ que permitam que o Estado experimente novas soluções, que de certa forma estimulem os dirigentes públicos a calcular e tomar riscos, e não os inibam a apoiar iniciativas de inovação. Quando se trata da ”Transparência e controle social sobre as decisões tecnológicas’’, quando estamos falando de tecnologias que usam grande volume de dados como Inteligência Artificial, se tem questões éticas, sociais e políticas relevantes, que exigem um nível de transparência e controle social maior do que em outras decisões mais tradicionais. Um outro ponto, é que, se estamos falando de adoção de tecnologias emergentes, também se deve-se aprimorar as tecnologias ligadas aos ‘’Processos de monitoramento e avaliação de riscos e resultados’’, para que se possa ter condições de controlar o processo de implementação, e fazer as necessárias consolidações e correções de rotas. Um último ponto, em se tratando de governança, são os ‘’Mecanismos de prevenção/redução da dependência tecnológica’’, que guarda relação direta com as capacidades de aquisição, especificação e articulação de parcerias, uma vez que se tem um quadro de dependência de alguns poucos fornecedores, e talvez a gente precise imaginar que nossos mecanismos de governança devem reduzir e mitigar os efeitos da independência para que o estado possa ter uma atuação mais aberta e inovadora para as tecnologias emergentes.

3.1.3) Estabelecimento do nível desejado de domínio de tecnologias críticas emergentes

Tratam-se de quatro níveis de capacidades de domínio que devem ser definidas como forma de aprimorar estrategicamente as decisões para a implementação e gestão de novas tecnologias no setor público.
a) Domínio de uso: condições para utilizar uma determinada tecnologia autonomamente, mas com pouca autonomia na sua escolha e aquisição;
b) Domínio de aquisição: controle de todas as variáveis relacionadas à aquisição do artefato tecnológico. Há acesso às informações necessárias, conhecimento disponível, base legal e força de trabalho preparada;
c) Domínio de especificação: a organização é capaz de especificar autonomamente os recursos desejados, influenciando diretamente seu desenvolvimento;
d) Domínio de produção: tem-se o controle de todas as variáveis necessárias para desenvolver um artefato tecnológico.

Isto se trata de uma escala onde os níveis desejáveis e possíveis de domínio vão variar de acordo com a natureza da tecnologia e suas funções, aliada às necessidades específicas de determinados órgãos e/ou serviços públicos. Um outro elemento importante nesta função de produção é o tempo, uma vez que nos dias de hoje pode-se precisar de um certo nível de domínio (maior ou menor), mas que pode ser mudado ao longo do tempo. Por isso deve-se pensar o estabelecimento do nível desejado de forma estratégica pela gestão pública.

3.2) Olhando para fora

3.2.1) Co-produção, inovação e práticas colaborativas

Para a construção de capacidades de colaboração e co produção, foram elencados três iniciativas de intervenção pública externa:
a) Processos colaborativos envolvendo o setor privado, universidades e sociedade;
b) Apoiar o surgimento de modelos de negócio atrativos para o setor privado;
c) Ecossistema de govtechs.

Existe uma demanda de desenvolvimento de ‘’Processos colaborativos envolvendo o setor privado, a universidade e a sociedade’’, uma vez que temos certa capacidade instalada no Brasil que nos dá condições de recrutar organizações, pesquisadores e empresas para inseri-las no longo prazo e de forma mais estratégica nos processos de implementação de tecnologias emergentes. Outro ponto importante deste tema pode se dar nas iniciativas que objetivam ‘’Apoiar o surgimento de modelos de negócio atrativos para o setor privado’’, para que o setor privado se engaje em iniciativas de coprodução, inovação e práticas colaborativas com a gestão pública.

Nesse sentido, também deve se dar importância às capacidades para fomentar e estruturar ‘’Ecossistema de govtechs’’, considerando que o Estado não consegue desenvolver determinados processos de desenvolvimento tecnológico, por isso ele deve ter capacidade para fazer isso em parceria com o setor privado, universidades e a sociedade civil.

3.2.2) Estímulo à incorporação de tecnologias emergentes pelo setor público e setor privado (formação de mercados)

Este elemento de criação de capacidades estatais pode ser constituído por diferentes variáveis, que são elas:
a) Utilizar o poder de compra e indução do Estado;
b) Financiamento e fomento à inovação nas empresas;
c) Articulação entre pesquisa acadêmica, setor público e setor privado; d) Ações de desenvolvimento e fortalecimento dos setores tecnológicos.

Em primeiro lugar, como se cria capacidades para ‘’Utilizar o poder de compra e indução do Estado’’, considerando o Estado não só como um grande comprador, mas também como tomador de decisões que induzam o uso de tecnologias pelo setor privado. Isso significa basicamente aperfeiçoamento de legislação, normatização das decisões de aquisição de tecnologia dentro do Estado, a consolidação de mecanismos de compra pública, práticas essas que já existem na gestão pública, de certa forma. Há também aspectos importantes ligados ao ‘’Financiamento e fomento à inovação nas empresas’’, atividade que também tem uma tradição na gestão pública brasileira, com avaliações bastante variadas sobre seus efeitos e impactos. Deve-se pensar formas de aprimorar ‘’Articulação entre pesquisa acadêmica, setor público e setor privado’’. Isso está ligado às políticas de fomento à Ciência e Tecnologia. E por fim as ‘’Ações de desenvolvimento e fortalecimento dos setores tecnológicos’’, também são nortes importantes quando tratamos dos estímulos à incorporação de tecnologias pelo setor público e privado.

3.3) Como explorar as oportunidades e acúmulos que já temos?

3.3.1) Capacidades científicas

O que a Universidade pode oferecer ao desenvolvimento de soluções tecnológicas emergentes para o setor público? Exemplo: Brasil tinha em 2017, 72 programas de pós-graduação em computação, além de outros campos correlatos.

Para essa amostra, foram considerados apenas os cursos de computação em si, sem contar os que são correlatos e envolvem mais de uma área (como administração e TI, por exemplo). Portanto, dada ao grande número de mestres e doutores formados no Brasil nestas áreas, como a gente explora essa capacidade científica e faz a universidade ser mais próxima e mais integrada a esses esforços?

3.3.2) Capacidades empresariais

Que possibilidades em tecnologias emergentes o setor privado está em condições de oferecer para o setor público? O Brasil tem um setor privado de tecnologias, que pode ser aproveitado pela gestão pública para o desenvolvimento de serviços. Deve-se constituir capacidades analíticas que nos permitam enxergar as possibilidades que o setor privado tem para oferecer processos de inovação tecnológica para o setor público de maneira vantajosa, considerando suas condições internas.

3.3.3) Capacidades estatais

Há uma série de capacidades estatais envolvidas no processo de adoção de tecnologias emergentes, como foi falado anteriormente. Dentre estas, vale a pena destacar a importância do aprimoramento das capacidade ligadas às: 1) Organizações; 2) Profissionais; 3) Estratégias e planos; 4) Mecanismos de coordenação federativa; 5) Financiamento. Dentre estes pontos, pode-se destacar que o Estado brasileiro tem histórico e experiência em articulação de políticas nacionais implantadas em caráter sistêmico e federativo, sobretudo a partir da constituição de 1988, o que guarda relação direta com o item ‘’4’’ desta lista de capacidades. E em termos de financiamento, disposto no item ‘’5’’, será que é possível desenvolver e aperfeiçoar mecanismos de financiamento do investimento no setor público em tecnologia, incluindo modelos colaborativos e sistêmicos de investimento? Perguntas importantes para reorientar os mecanismos de promoção de políticas relacionadas à adoção de tecnologias emergentes.

3.3.4) Como articular essas diferentes capacidades em políticas públicas estruturadas e com visão de longo prazo?

Será que nós vamos repetir com novas tecnologias emergentes uma prática de olhar para as decisões tecnológicas com um olhar meramente microeconômico? De comprar o que é mais barato ou tem o menor custo de aquisição de propriedade intelectual nos próximos três anos, sem pensar em termos mais amplos, desperdiçando oportunidades de colaboração dentro do estado, entre as esferas da federação ou com empresas, a sociedade civil e a universidade. A partir do que foi colocado aqui, pode-se encaminhar para possíveis apontamentos deste grupo de especialistas sobre como superar os desafios para a mobilização de capacidades para a incorporação de tecnologias emergentes pelo Estado brasileiro.

4) 1º bloco de discussões

4.1) Enquetes
1ª Pergunta – Assinale as alternativas que apresentam as duas maiores dificuldades para a adoção eficaz de tecnologias emergentes no setor público.

Segundo os especialistas presentes, as duas maiores dificuldades para a adoção eficaz de tecnologias emergentes no setor público são o despreparo de dirigentes públicos (67% das escolhas) e a carência de recursos humanos para implementação (44% das escolhas). Também vale destacar a terceira maior dificuldade, de acordo com os especialistas, a fragilidade do ecossistema de inovação (33%).

4.2) Debate com os especialistas
Principais problemas, cases e caminhos na mobilização de capacidades estatais para adoção de tecnologias emergentes na gestão pública.

Nathalia Mazotte: inicia sua faça declarando que foi uma das pessoas que votou no despreparo dos dirigentes públicos e na fragilidade dos ecossistemas de inovação como uma das principais dificuldades. A gente (INSPER) fez uma pesquisa para transparência internacional sobre transformação digital centrada no executivo dos estados. Foi identificado que a falta de apoio de lideranças em projetos que envolvem novas tecnologias é um dos principais fatores dificultantes, uma vez que mesmo nos Estados que tinham um corpo de servidores técnicos capacitados para operacionalizar essas mudanças, a falta de direcionamento tornava por muitas vezes inviáveis essas iniciativas. Um outro ponto importante, trazido na fala do professor José Carlos Vaz, é sobre o processo de colaboração entre universidade, sociedade e academia, uma vez que se tem internacionalmente uma série de desafios e premiações com esse tema. Talvez este grupo possa se utilizar da plataforma do CONIP para formular desafios ligados à implementação de novas tecnologias no Judiciário, como por exemplo, ligados à abertura de dados no poder Judiciário. Talvez este grupo possa servir como fomentador dessas iniciativas no Brasil, de forma propositiva.

Nicolau Reinhard: Primeiramente gostaria de circundar uma observação da Nathalia sobre as principais dificuldades para a transformação digital, a partir de dois casos extremos que ilustram isso muito bem. Com a pandemia do COVID, o Judiciário brasileiro foi capaz derapidamente realizar a normatização necessária para promover a informatização de seus processos, sendo muito bem sucedido. Outro caso extremo é o da Saúde, que também foi afetado tanto quanto outras áreas pela pandemia, mas até agora se está discutindo a normatização para digitalização de seus processos. Portanto o grande desafio que nós temos é o de tratar da normatização da transformação digital que viabiliza o uso de novas tecnologias pelo setor público.

Eduardo Arruda: Agradeceu pela exposição do professor José Carlos Vaz, que trouxe em sua apresentação excelentes insights a partir desta visão de dentro para fora e de fora para dentro do Estado, ela tem um potencial para estruturar bem nossa discussão. Desta forma, irei me debruçar sobre três temas apontados pelo professor Vaz em sua apresentação. O primeiro deles está atrelado a formulação de políticas públicas, com o foco no Judiciário, onde há uma dificuldade muito grande de formular políticas públicas no longo prazo, pela própria descontinuidade no processo de gestão do Judiciário, que acontece a cada 2 anos, conforme determina a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei complementar nº 35/1979), não sendo este um tempo suficiente para que se consiga formular e levar a termo as políticas de adoção de novas tecnologias. Isso evidencia a necessidade de criar políticas baseadas em planejamento estratégicos de longo prazo, que contem com o apoio dos futuros gestores.

O segundo ponto está relacionado com a participação do setor privado como aliado nessa empreitada de transformação digital do Judiciário, onde há resistência (explícita ou velada) para as iniciativas de colaboração entre esses entes, por parte da própria gestão pública, que observa-se no seguinte exemplo: na coordenação técnica do programa Justiça 4.0 foi travada quase que uma batalha para construir o convencimento de que a plataforma digital do poder Judiciário deveria ser aberta para a integração de sistemas construídos por empresas privadas, pois, até então, apenas os sistemas desenvolvidos pelos próprios tribunais ou por empresas públicas poderiam aderir a plataforma digital do poder Judiciário, que é o elemento que serve de ligação entre todos os sistemas dos 92 tribunais do país.

O terceiro ponto é que a iniciativa privada sofre concorrência de empresa pública. As conhecidas Prods (empresas de gestão e processamento de dados públicas, como Serpro, Dataprev, Prodesp etc.), que cobram extremamente caro, se valem da prerrogativa de poderem ser contratadas sem os processos tradicionais de licitações públicas e, por vezes, a entrega não é de qualidade equivalente ao custo que se cobra nessas contratações. O último ponto, se trata dos debates ligados às temáticas de ‘’open data’, que resguardados as determinações da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), relacionadas à privacidade e sigilo, utilizando a faculdade da anonimização desses conjuntos de dados, pelo menos na área de Inteligência Artificial, se fossem publicizados os datasets que se tem dentro do Judiciário, a academia e o setor privado teriam condições de produzir soluções que desonerariam o Judiciário de arcar com custos de desenvolvimento. Ainda sobre as iniciativas de colaboração entre academia e gestão pública, nota-se que há um descompasso entre as ações destes dois grupos, principalmente no “timing”, por exemplo, um gestor por ter apenas dois anos de gestão precisa de entregas em poucos meses e as universidades atuam por semestre. Por outro lado, a academia não é avaliada pelas entregas de projetos, e sim por publicações. Portanto, a ampliação dos parâmetros de avaliação na academia (abarcando a entrega de produtos e soluções) é um passo necessário à aproximação da academia e das iniciativas públicas de adoção de tecnologias emergentes.

Neide de Sordi: há também uma grande dificuldade na formação de mão de obra, mas isso não é uma prerrogativa apenas do Judiciário, mas sim de todo o funcionalismo público. Um dos maiores desafios está sem dúvidas nas capacidades ligadas à mão de obra, em número e qualificação para operacionalizar essas questões. Em minha passagem pelo executivo federal, pude notar que o Arquivo Nacional sofre as consequências da não transformação digital dos órgãos, por conta dos documentos a serem recolhidos que podem ser digitais ou físicos, Então pode-se dizer que o Judiciário está muito bem, se comparado a grande maioria do poder executivo. Desde a emenda nº 45, de 2005, o Judiciário vem fazendo um processo de transformação digital muito acelerado, portanto é normal que o Judiciário não seja uma grande referência na adoção de novas tecnologias, pois para isso se necessita de um convencionalismo maior em suas mudanças. A questão citada pelo professor Nicolau, por exemplo, sobre os avanços gerados a partir da pandemia que possibilitou serem realizadas audiências judiciais virtuais com sucesso, é uma discussão que vem sido travada há décadas. É natural que o Judiciário demore para tomar decisões, sobretudo pelo formalismo de seus processos. Em se tratando de software, nota-se que há muitas aplicações livres e abertas disponíveis, porém como a mão de obra é escassa, muitas vezes a gestão acaba fazendo opções por compras não vantajosas, por conseguir avaliar a longo prazo. Talvez seria interessante estimular iniciativas para que a academia tenha papel na capacitação dos agentes públicos, como uma espécie de laboratório para essas tecnologias livres, que poderiam ser muito melhor absorvidas pela administração pública e pela sociedade como um todo.

Paulo Pinto: Primeiro, importante ressaltar que nesta reunião somos seis pessoas que fizeram suas carreiras e contribuições dentro do sistema Judiciário, e isso leva a uma questão que foi colocada no chat, sobre questões políticas que podem ter relação com as nossas propostas para o próximo governo. Sobre isto, existe um objetivo deste grupo de especialistas em promover a transformação digital para além do Judiciário. Claro que o Judiciário também faz parte da estrutura pública, então boa parte das questões também dizem respeito a si, mas nós temos um evento agora para o final de agosto que é o CONIP (Congresso de Inovação no Poder Judiciário e Controle), e esse grupo procura preparar o debate para este evento, portanto é entendível o ponto da Neide sobre a necessidade de se atentar às questões do Judiciário. Oportuno parabenizar o professor José Carlos Vaz pela sua apresentação, a organização do pensamento nas categorias olhar para dentro e para fora são importantes e ajudam a organizar o pensamento.

Sobre as questões ligadas ao processo de transformação digital do Judiciário na pandemia, este é um processo que vem sendo gestado há bastante tempo. Houve uma aderência fácil aos mecanismos do meio digital, pois já se usava, por exemplo, os sistemas de processo eletrônico como o E-proc aqui de Porto Alegre ou o PJE do Conselho Nacional de Justiça e outros. Já se vem trilhando caminhos há muito tempo, há três décadas que o Judiciário investe em sua transformação digital. Basta lembrar que eu sou da carreira de informática, o Melre e o Arruda também e nós estamos há cerca de 30 anos (estou aposentado agora) no setor, ou seja, há uma carreira específica de informática no Judiciário, também há algum tempo. O Judiciário está há muito tempo nessa empreitada, basta lembrar por exemplo do SEI (Sistema Eletrônico de Informações) desenvolvido pelo TRF4, que é usado hoje em dia como sistema de protocolo administrativo por todas as universidades federais, pela prefeitura São Paulo e um gigantesco número de órgãos públicos pelo Brasil, que se utilizam desse sistema desenvolvido por equipes de informática dentro do Judiciário. O juiz Marcelo Mesquita, que está aqui conosco também tem uma trajetória notável na área, já foi juiz auxiliar do CNJ e também Coordenador da pasta de tecnologia. Isso faz com que seja fácil fazer esses processos. Mas isso tem suas razões de acontecer, neste caso ligada a uma explosão de processos judiciais a partir da constituição de 1988, onde foram instituídas as garantias e direitos individuais e coletivos, que deram origem ao crescimento exponencial dos pedidos pela intervenção do Judiciário, que teve que investir em informática como uma forma de suprir a escalada de sua demanda.

Um grande problema é a questão da administração da justiça, que tem sido pouco tratada conceitualmente, uma vez que a própria academia não dá bola para isso. A gente entra na faculdade de direito, as únicas coisas que se fala é sobre doutrina, julgamento e conteúdo destes. Sobre a administração do Judiciário, é pouco ou não é discutido, embora seja extremamente importante, afinal de contas quem pauta se o processo vai ou não a julgamento é o presidente do tribunal, que não precisa nem proferir seu voto para interferir no processo, tamanha a concentração de poder administrativo em suas mãos. Sobre o tempo da gestão de dois anos no Judiciário e a dependência da administração sobre ela, os EUA tiveram uma solução interessante que foi a separação da gestão administrativa da gestão do tribunal, onde existe a figura do administrador judicial que tem poderes administrativos e o presidente do tribunal que tem poderes de mando judicial, porém eles não se excluem em seus atos deliberativos. Existe uma conjugação de fatores necessária, para a gestão do Judiciário que simplesmente não é tratada, a própria academia não trata isso, uma vez que nas publicações e salas de aula estes assuntos são laterais.

Lúcio Melre da Silva: primeiro gostaria de fazer os agradecimentos a todos os companheiros da área de gestão de tecnologias do Judiciário. Eu sou servidor do poder Judiciário há 38 anos, sendo um daqueles que foi afetado pela reforma previdenciária, pois eu me aposentaria há dois anos, mas ganhei mais quatro. Hoje estou no TRF1, mas já passei por diversos lugares no Judiciário. Aqui no tribunal, no início da pandemia nós tínhamos 50% dos tribunais com processos que tramitavam no PJE, os outros 50% tramitavam em outros sistemas ou por meio físico. Passados 2 anos, nós temos 97% dos nossos processos tramitando no PJE. Esses 3% restantes são processos criminais, onde há uma maior dificuldade de digitalização por conta dos grandes números de anexos e provas, porém até o fim de junho espera-se que 100% dos processos estejam no PJE. O que mostra que a pandemia, com todos os seus males, trouxe consequências positivas ao Judiciário, sobretudo em se tratando da digitalização de processos e adoção de outras tecnologias. Ao longo dos próximos encontros, se houver espaço, gostaria de trazer um pouco mais sobre como acontecem os processos de transformação digital aqui no TRF1, como o laboratório de inovação e outros projetos que acontecem aqui no tribunal.

5) 2º bloco de discussões

5.1) Enquetes
2ª Pergunta – Assinale a maior carência em termos de consolidação de ecossistemas de inovação que impacta diretamente na adoção de novas tecnologias:

De acordo com a maioria dos especialistas participantes (70% das escolhas), destaca-se como a carência em termos de consolidação de ecossistemas de inovação que impacta diretamente na adoção de novas tecnologias o fato de que o setor público compra tecnologia como quem compra material de escritório, sem visão estratégica.

3ª Pergunta – Assinale as duas maiores forças que nós temos dentro da gestão pública no Brasil para contribuir na mobilização de capacidades necessárias a adoção de novas tecnologias:

De acordo com os especialistas participantes, as duas maiores forças que nós temos dentro da gestão pública no Brasil para contribuir na mobilização de capacidades necessárias a adoção de novas tecnologias são as políticas e organizações existentes no campo de ciência, tecnologia e inovação (64% das escolhas) e os talentos entre os servidores públicos (55% das escolhas).

5.2) Debate com os especialistas
Os especialistas pontuaram o que se pode fazer para reforçar as forças mobilizadoras que nós já temos na gestão pública.

Heloisa Candello: meu ponto de vista talvez seja afetado em função de eu fazer parte de um laboratório de pesquisa dentro da IBM, e talvez não reflita o pensamento de uma parcela dos especialistas, mas se houver divergências, podemos discutir isso. Quando se fala dos despreparos dos dirigentes, eu penso que de acordo com os projetos que a gente já fez dentro de empresas privadas ou bancos, quando se olham para os dirigentes eles não necessariamente precisam saber tudo sobre tecnologia, mas sim estarem envolvidos no processo. Então, será que não seria uma questão de metodologia envolver os dirigentes no processo de adoção de novas tecnologias. Outra coisa seria o quanto é fácil de entender os impactos destes processos, pois uma vez que o dirigente não consegue observar os ganhos que podem advir da implementação de soluções tecnológicas, é muito difícil que o mesmo articule ou até mesmo apoie processos de transformação digital.

Sobre o longo tempo e investimento necessário para produção de pesquisas ligadas à transformação digital, pode-se destacar que é necessário um planejamento de avaliação, que leva um certo tempo para que se possa medir de maneira ampla as consequências de adoção de novas tecnologias na gestão pública. Dentro do laboratório de pesquisas da IBM, nós temos algumas iniciativas de pesquisa que não necessariamente envolvem dinheiro, o que pode ser um método a ser observado e talvez adotado em iniciativas de formulação de pesquisa sobre inovação digital. O tempo é um fator fundamental na avaliação de impacto e deve ser levado em consideração para produção de avaliações antes (de risco) e depois (de impacto) dos processos de adoção de novas tecnologias na gestão pública.

Nicolau Reinhard: os ítens do questionário estavam muito adequados, mas eu gostaria de acrescentar mais um, que tem uma ligação direta com este grupo. Eu recomendaria que vocês olhassem os currículos de três pessoas com as quais eu pude colaborar ao longo de décadas, o do Paulo Pinto, do Lúcio Melre e principalmente da Maria Alexandra Cunha. Pois eu vejo que grande parte das iniciativas bem sucedidas de informatização do setor público dependeram de lideranças de pessoas e indivíduos, pessoas qualificadas e que tinham iniciativa. Por isso eu creio que a questão das lideranças individuais é uma coisa muito importante nesse processo.

Paulo Pinto: em relação à inovação, tem uma coisa importante: o Banco Mundial em 2004 afirmou que o Judiciário brasileiro é diferente do resto do mundo pelo grau de informatização de seus procedimentos, no mesmo ano da Emenda Constitucional nº 45 que criou o CNJ e tentou aproximar os tribunais que eram com ilhas separadas por oceanos. Acho que existe uma questão que deve ser pontuada em relação a competição que existe entre os tribunais, e não é sem razão que Nelson Jobim, primeiro presidente do Supremo do CNJ, falou que os tribunais eram ilhas distantes e apontou a necessidade de criar pontes, que não foram totalmente criadas de forma segura e perene entre eles. Esta disputa se define em qual tribunal vai desenvolver o melhor sistema, ou digitalizar o maior número de processos e uma das consequências é que hoje nós temos 91 tribunais no Brasil e três conselhos nacionais e núero 123 sistemas informatizados , ou seja tem tribunais com mais de um , embora exista um esforço bastante grande de unificar. Pode-se dizer que essa competição também gerou inovação. Para encerrar minha fala, destaco que o CONIP deve não apenas debater novas tecnologias na gestão pública, mas também a própria gestão do Judiciário em si de maneira mais ampla e como isso tem impacto na adoção de novas tecnologias.

6) Encerramento
Nesse encontro foi discutida a construção de capacidades para adoção de novas tecnologias no setor público e, dentro dessa discussão, foram levantadas algumas dificuldades e carências e algumas oportunidades. Os especialistas também fizeram algumas propostas concretas de atuação, a saber:

  • Estimular a rápida normatização dos processos de inovação, da mesma forma que houve agilidade no Judiciário para normatizar o seu funcionamento remoto, online durante a pandemia;
  • Criação de um laboratório de capacitação de servidores em novas tecnologias de tal forma que se possa experimentá-las e construir mecanismos de avaliação antes (de risco) e depois (de impacto) dos processos de adoção de novas tecnologias na gestão pública;
  • Estimular a formulação de soluções tecnológicas, a partir de desafios com a temática da inovação com enfoque em abertura de dados.

No campo institucional, os especialistas consideram que o Judiciário deveria ampliar o tempo de cada gestão para além dos atuais de 2 anos. Alternativamente, poderia ser interessante seguir o modelo americano no qual a gestão da administração do Judiciário é separada da gestão judicial.

Os documentos gerados aqui serão publicizados para que as pessoas possam também ter acesso aquilo que se é discutido e produzido de forma colaborativa. O próximo tema será sobre a pesquisa que o Tribunal de Contas da União fez em toda a administração pública federal sobre o uso da inteligência artificial. E na reunião seguinte, em junho, haverá a apresentação do programa Justiça 4.0.

7) Lista de especialistas convidados

em vermelho, os presentes na reunião:

Alexandre Atheniense, Sócio do Alexandre Atheniense Advogados

Alexandre Libonati de Abreu, Juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional da Justiça

Álvaro Gregório, Coordenador do Núcleo de Inovação e Tecnologia da Cia. Do Metropolitano de São Paulo – Metrô SP

Eduardo Arruda, CEO da DocSpace Documentos Digitais

Fernanda Campagnucci, Diretora da Open Knowledge Brasil

Gledson Pompeu, Assessor para Inovação e Governo Digital do Tribunal de Contas da União

Haydee Svab, Consultora Data Science & Transport Planning da ASK-AR

Heloisa Candello, Pesquisadora IHC da IBM Research

José Carlos Vaz, Professor da Universidade de São Paulo – USP

Lúcio Melre da Silva, Diretor de TI do Tribunal Regional Federal da 1a. Região – TRF 1a.

Marcelo Mesquita, Juiz do Tribunal de Justiça do Piauí

Maria Alexandra Cunha, Professora da Fundação Getúlio Vargas -FGV-SP

Natália Mazotte, Coordenadora do Programa de Comunicação e Jornalismo do INSPER

Neide de Sordi, Membro do Comitê do Programa Nacional de Gestão de Documentos e Memória do Poder Judiciário

Nicolau Reinhard, professor da Universidade de São Paulo – USP

Paulo Cezar Neves Junior, Coordenador do programa de inovação em direito do Mackenzie e Juiz Federal do Tribunal Regional Federal da 3a. Região – TRF 3a.

Paulo Pinto, Pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

Wesley Vaz, Secretário de Fiscalização de Integridade de Pagamentos do Tribunal de Contas União

Coordenador: Vagner Diniz – Gerente do Centro de Estudos sobre Tecnologias Web, do Nic.br.
Palestrante: José Carlos Vaz – Professor da Universidade de São Paulo e Coordenador do Grupo de Estudos sobre Tecnologia e Inovação na Gestão Pública (GETIP) da EACH-USP.
Relator: Anderson Ribeiro – Pesquisador do Grupo de Estudos sobre Tecnologia e Inovação na Gestão Pública (GETIP) da EACH-USP.

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